Escrever um balanço de mandato que sintetize nossas lutas, projetos e atuação em tempos de enfrentamento ao governo Bolsonaro não é tarefa simples. Esse documento foi escrito a muitas mãos, sobretudo, pelos militantes da comunicação do nosso mandato, mas foi inspirado em todos, todas e todes que resistiram.
O Brasil vive uma das piores crises de sua história. Em todas as áreas vemos desmonte, abandono e devastação das poucas políticas públicas conquistadas anteriormente. Temos um conjunto de criminosos que habitam o Palácio do Planalto, ministros com o intuito claro de destruir as áreas que deveriam comandar um país que perdeu mais de 615 mil vidas para a Covid-19 e para o negacionismo atuante de Bolsonaro. Temos a fome que chega a 20 milhões de pessoas, a superexploração da classe trabalhadora, o arrocho salarial e a disparada dos preços de combustíveis, alimentos e gás de cozinha. A vida do povo está desesperadora e, infelizmente, o Brasil fez a experiência com um governo da extrema-direita da pior maneira possível: com dor, com luto, mas também com luta, solidariedade e resistência.
Sabíamos que Bolsonaro no poder significaria o aprofundamento da agenda econômica antipovo, com a tentativa permanente de fechar as liberdades democráticas conquistadas com a luta pelo fim da ditadura civil-militar. Claro que, de forma mentirosa e demagógica, a extrema-direita aproveitou a crise econômica, social e política do ciclo anterior, a falência dos partidos burgueses e suas representações, o vazio, deixado pela esquerda que governou, e se adaptou ao regime político, não mexendo nas estruturas de um país tão marcado pela ganância da casta política e da elite econômica, e, por outro lado, pela esquerda radical que, embora nascente e crescente como o PSOL, ainda não se forjou em uma esquerda com influência de massas amplamente enraizada no povo. Dessa forma, parecido com o que fez Trump nos EUA, fortemente ajudado pelos ideólogos do trumpismo, Bolsonaro se vendeu como alguém de fora do sistema. Um setor do movimento de massas comprou gato por lebre, votou contra seus próprios interesses e elegeu o filho mais decadente desse sistema político apodrecido. Os defensores da ditadura civil-militar, o ruralismo atrasado, os lgbtfóbicos, os machistas e racistas, há tempos incomodados com nossas conquistas históricas, se organizaram politicamente para expressar a reação conservadora.
Quando veio a pandemia, o governo mostrou sua face mais mesquinha, negando a ciência e ajudando a proliferação do vírus. Certamente, um dia Bolsonaro será condenado pelos crimes contra a humanidade que cometeu, pelo genocídio do povo, e, sobretudo, dos indígenas, pelas mentiras, pelas fake news que custaram tantas vidas no nosso país. Mas não nos interessa apenas uma condenação daqui a 10 anos. Precisamos dar um basta já nesse criminoso e no exército de delinqüentes que o cercam e o bajulam. Sempre é difícil escrever a luz da história do tempo presente, ou seja, naqueles momentos que ainda não tem seu desfecho e, para tê-lo, ainda dependem da nossa atuação. O que não pode faltar é audácia, ousadia e capacidade crítica para ver e ajudar a escrever essa história.
Audácia que não nos faltou quando boa parte da esquerda ainda não estava convencida de que era preciso impedir Bolsonaro e, ainda assim, reunimos 1 milhão de assinaturas pelo impeachment em março de 2020, mostrando que já era o momento de pará-lo. Ousadia para chamar o povo a ocupar as ruas, porque quando o governo é mais letal que o vírus é preciso derrotá-lo, como fizemos em todos os momentos que o movimento de massas entrou em ação. Capacidade de análise também não nos faltou para ver as mudanças no mundo, como o movimento negro que derrotou Trump nos EUA, os camponeses que derrotaram o golpe na Bolívia, o movimento gigante que impulsionou a emergência de um nova esquerda no Chile, que se propõe a derrotar a Constituição de Pinochet e esteve mobilizada para derrotar Kast (o Bolsonaro chileno) nas eleições. Sem contar a derrota eleitoral da direita na Argentina e a vitória feminista naquele país, mobilizações no Paraguai, o ascenso na Colômbia, só parado com uma repressão brutal do governo reacionário.
É verdade que o mar da história está agitado e seguirá assim, mas com a crise do capitalismo temos mais polarização e resistência, sobretudo das mulheres, negros e negras e jovens. No Brasil, tivemos o #EleNão ainda em 2018, a maior manifestação feminista da nossa história, que embora não tenha conseguido derrotar Bolsonaro garantiu, junto com o povo nordestino, a existência de um segundo turno nas eleições; tivemos o #TsunamiDaEducação, em maio de 2019, quando os estudantes derrotaram os cortes de verbas de Bolsonaro e Weintraub, mas acima de tudo, colocaram a bola no meio do campo, garantindo que muitas liberdades democráticas não fossem atacadas pela extrema-direita. Tivemos mobilizações pelo #ForaBolsonaro que começaram a eclodir em 29 de maio quando, de novo, estivemos na linha de frente dizendo “é hora de ir às ruas”. Atos que mostraram uma vanguarda social antiBolsonaro com mais de 1 milhão de pessoas ativas. Verdade que ainda foram insuficientes para derrotá-lo, era preciso ainda mais gente, mais atos. Afinal, a burguesia brasileira seguiu aceitando como normal um governo de criminosos porque tem interesse na agenda antipovo de Paulo Guedes e Bolsonato. Um setor da própria esquerda, como o PT, prefere levar essa disputa para o calendário eleitoral, o que é um risco gigante para o país.
Mais do que pensar nos ‘afinais’, e são muitos, precisamos seguir apostando nossas fichas na tarefa zero, que é derrotar Bolsonaro, sabendo que a luta contra o bolsonarismo será mais longa e muito necessária. Ao mesmo tempo em que enfrentamos a extrema-direita, é preciso manter a capacidade de lutar por um programa independente e anticapitalista que vá à raiz dos problemas, defendendo não só a manutenção, mas também a ampliação das liberdades democráticas, e que proponha uma revolução econômica que enfrente o sistema financeiro, com taxação de grandes fortunas, revogação das medidas antipovo de Temer e Bolsonaro, reforma agrária radical para matar a fome do povo e baratear alimentos, que conecte com centralidade a luta das mulheres, dos negros e negras, dos LGBTI+, dos indígenas, com a revolução das estruturas econômicas e sociais que sempre condenaram nosso povo à superexploração, opressão e violência do Estado contra a ampla maioria do povo. Disso depende o nosso futuro e, inclusive, o futuro do planeta em tempos de emergência climática. Disso depende também a possibilidade de evitar novas extremas-direitas que podem seguir se alimentando das crises que eles ajudaram a produzir como defendores do capitalismo. Mas vale ressaltar: eles querem a exploração capitalista dos de cima sem as liberdades dos de baixo para lutar. Até agora, não conseguiram. E estou convencida de que não conseguirão. Essa luta segue sendo a luta das nossas vidas, da nossa geração.
Poderia nesse texto falar como foi construir o PSOL junto com Luciana Genro, Roberto Robaina, Pedro Ruas e tantos outros e como essa acumulação junto com o #EleNão nos levou à Câmara dos Deputados em um momento ímpar, enfrentando a extrema-direita e o centrão fisiológico, como foi ser líder do PSOL e compor uma bancada tão aguerrida no início da pandemia, as noites não dormidas, a angústia de ver os deliquentes atuando pró-vírus, como foi lutar pela mais ampla unidade de ação mantendo a independência política e os princípios que nos norteam, ver pessoas morrerem, a maioria negras e nas periferias, vítimas do coronavírus, do Bolsonaro e do sistema, assim como o sofrimento dos indígenas enfrentando o garimpo em sua ganância. São muitas dores, muitas lutas, muita aprendizagem. Mas prefiro escrever sobre a solidariedade que vi nas periferias, sobre a rebeldia das mulheres que não se dobraram majoritariamente a Bolsonaro, sobre a garra da juventude, a força dos indígenas que resistem há 522 anos e seguem lutando, a força do movimento antirracista, a comunidade LGBTI+ que segue em luta, os servidores públicos que durante nove meses resistiram e derrotaram, por ora, a PEC 32, a coragem da classe artística, que foi profundamente atingida pela pandemia e ainda assim segue criando e denunciando a censura, o autoritarismo e o desmonte da cultura provocado por Bolsonaro, sobre a garra dos profissionais da saúde que, entre tantas dores , salvaram tantas vidas.
É fato que o trauma da Covid-19 e de Bolsonaro são e serão longos, mas prefiro sempre me inspirar em quem lutou em circunstâncias piores e deixaram o seu legado para nós. Segue sendo nossa vez, segue sendo nossa hora. Que estejamos à altura dos desafios. Te desejo mais que uma boa leitura, desejo que esse balanço seja um convite para lutar cosnoco. Ninguém é melhor que todos nós juntos! Vem com a gente!