ONGs criticam desmonte das políticas públicas para HIV/Aids em audiência pública promovida pela deputada Fernanda Melchionna na Comissão de Seguridade Social e Família.
A resposta brasileira à epidemia de HIV/Aids sempre foi elogiada internacionalmente pela efetividade e construção em sintonia com os movimentos criados por pessoas soropositivas para defender seus direitos, mas agora está em risco pela falta de recursos e pelo conservadorismo crescente. Esta é a opinião dos movimentos sociais que debateram na audiência “Situação das políticas públicas para HIV/Aids no Brasil” proposta pela deputada federal Fernanda Melchionna (PSOL-RS) à Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados realizada na última terça-feira (8 de outubro). O evento foi fruto de um requerimento apresentado pela deputada à época da mudança do nome do departamento específico para tratar de ISTs e Aids no Ministério da Saúde para torná-lo mais genérico pelo governo.
Ministério nega desmonte
O representante do Ministério da Saúde, Gerson Pereira, diretor do Departamento de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis, contestou as alegações de que há um desmonte nas políticas. Ele disse também que o Rio Grande do Sul, um dos estados mais afetados pela epidemia, é prioritário no repasse de recursos da pasta e que as ações de prevenção atualmente não são voltadas à população LGBTI+ por que a região apresenta um cenário de generalização da doença. “O Rio Grande do Sul reclama de não ser prioridade, mas possui muita atenção da nossa parte. Não estamos tendo falta de insumos e medicamentos para tuberculose e Aids”, pontuou.
A deputada Fernanda Melchionna contrapôs o argumento do diretor sinalizando que a situação tem um nível de gravidade fora do tolerável. “Porto Alegre está com os piores números do país no crescimento de HIV/Aids, enfrenta dificuldade de acesso a profilaxia e medicamentos. Se mesmo o ministério colocando o Rio Grande do Sul como prioridade o problema ainda não é resolvido, então significa que está sendo feito pouco. Precisamos caminhar de fato para a erradicação das transmissões e tratamento público gratuito para todas as pessoas diagnosticadas”, afirmou.
O Brasil está na direção oposta da média mundial, registrando entre 2010 e 2018 um aumento de 21% no número de novas infecções por HIV. Passou de 44 mil novos casos em 2010 para 53 mil em 2018 (Unaids). “É preciso que o governo apresente estratégias para lidar com HIV/AIDS no país”, declarou a deputada.
“Acabaram com a AIDS por decreto”
Representando a Articulação Nacional de Luta contra a Aids (Anaids), o Fórum Ong Aids/RS e do Grupo de Apoio e Prevenção da Aids (GAPA), a ativista Carla Almeida declarou que a avaliação de desmonte por parte dos movimentos sociais leva em consideração as mudanças no ministério, como o nome e o fim do departamento de comunicação voltado especificamente para criação de campanhas de prevenção. Ela avalia que as mudanças provocam desdobramentos no foco das políticas também em nível estadual e municipal, gerando desresponsabilização dos demais agentes. “Ninguém está discutindo uma política de governo, mas de Estado. Um patrimônio do povo brasileiro. A proposta atual para política de AIDS é o apagamento social. Tiraram do nome do departamento e invisibilizam o problema. Acabamos com a AIDS por decreto. A epidemia cresce entre os mais novos e o governo fecha o canal de contato com eles, acabando com os canais nas redes sociais”, pontuou.
Carla também afirmou que as diferentes patologias exigem respostas diversas e que é impossível enfrentar a epidemia sem trabalhar o cenário de violência, machismo, homofobia e transfobia ao qual estão submetidas as pessoas infectadas, o que não seria uma política do atual governo. “O sucateamento do SUS é uma ameaça que nos preocupa pois certamente vai impactar as políticas de AIDS”, disse.
Silêncio = morte
A clássica imagem “Silence = Death” criada por ativistas norteamericanos na década de 80 e que virou um símbolo da luta contra a AIDS ilustrou a fala do representante da Secretaria de Articulação Política da RNP+ Brasil e da ABIA/Aids, Jorge Beloqui. Ele mostrou que diferentemente do passado, atualmente há muitas ferramentas para lidar com a doença, como as profilaxias pré e pós-exposição, testes rápidos e medicamentos mais eficientes, mas que mesmo assim há escassez de informação. “Ninguém mais precisa morrer de AIDS, nem desenvolver AIDS, mas a falta de vontade política e o conservadorismo tornam tudo mais difícil”, analisou.
Beloqui apresentou dados anuais de 40 mil casos identificados e 12 mil mortes por AIDS registradas no Brasil e frisou que há descontrole da epidemia no Rio Grande do Sul e no Amazonas, com aumento de incidência especificamente com jovens gays, mas que a epidemia que tem se tornado mais difícil de enfrentar é a de preconceito e discriminação. “A estigmatização provoca o abandono do tratamento. Outros evitam o teste para desconhecer o resultado. Este apagamento do HIV/Aids no nome do departamento traz uma carga simbólica, econômica, política e social. É prejudicial ao combate da epidemia. Silêncio é igual a morte”, concluiu.
Ausência de trabalho e prevenção
O representante da ONG SOMOS – Comunicação, Saúde e Sexualidade Alexandre Böer denunciou que o problema e as possibilidades de solução são repetidos à exaustão, mas não há formas claras de entender se os recursos estão sendo bem aplicados. Ele também entende que o Estado não propicia mais a realização de trabalhos de prevenção à doença. “Prevenção não é só disponibilizar camisinha. De que forma isso está sendo entregue? Não existe trabalho educativo. Só estamos trabalhando com a questão da testagem e disponibilidade dos tratamentos como se isso fosse resolver o problema”, criticou.
Böer também afirmou que acredita na potencialidade dos trabalhos de prevenção realizados nas áreas de Educação e Cultura e que enxerga neste momento um processo de cerceamento às instituições e liberdades democráticas. “No Rio Grande do Sul e em Porto Alegre vivemos um processo de liquidar com os conselhos. Eles só existem burocraticamente. Os próprios membros do governo não participam das reuniões. Isso se refletiu no Conselho de Saúde, que o prefeito não quis reconhecer a eleição, no Conselho de Direitos Humanos, em que aconteceu a mesma coisa e estamos há 2 anos sem conseguir fazer eleição. Isso inviabiliza o controle social das políticas públicas. O desmonte é generalizado”, denunciou.
População trans invisibilizada
A presidenta da Rede Trans Brasil, Tathiane Araújo, salientou que no cenário de desmonte das políticas públicas, a população trans acaba sendo a mais negligenciada. “Perdi muitas companheiras, que não ultrapassaram a barreira da violência, pois entre a população trans a média de idade é de 35 anos. Se não morre de Aids ou violência, morremos de não participar de uma sociedade que nos aceita. Não é natural que profissional do sexo seja a única alternativa para essa população”, disse.
Tathiane denunciou que o departamento responsável pela AIDS no Ministério da Saúde tem se negado a participar de eventos promovidos pela rede e acompanhar e o diálogo está prejudicado, o que faz com que os dados apresentados nos dossiês sejam ignorados. Ela também sinalizou que não há políticas de Profilaxia Pré-Exposição ao HIV (PREP) para esta população. “Falta reconhecimento das mulheres trans enquanto uma parcela social a ser considerada de forma específica. Nossa população continua morrendo de HIV. É duro falar disso sem se emocionar. Precisamos um trabalho integrado, não só com a sociedade civil, mas com estado e município, que não fazem editais, não criam comitês, e não possuem nem um carro para sair de madrugada distribuindo preservativos no acostamento da BR, porque só nós temos essa forma de acesso”, concluiu.
Encaminhamentos práticos
Durante o evento, a deputada Fernanda Melchionna leu uma nota do Coletivo de Sobreviventes da AIDS pedindo atenção para o processo de desaposentadorias que centenas de pessoas soropositivas estão passando no Brasil. De forma geral, profissionais foram aposentados em uma época no qual o tratamento do HIV/Aids causava efeitos graves na saúde e impossibilitava o trabalho. Desde o início do governo Bolsonaro, o INSS tem estimulado perícias nestas pessoas e retirando o direito de aposentadoria delas, o que gera vulnerabilidade social de pessoas que não possuem condições de se reinserir no mercado de trabalho. A deputada propôs a realização de um Requerimento de Informação ao órgão para solicitar detalhes sobre a situação.
Fernanda também sobrou que o Ministério da Saúde receba os movimentos de pessoas trans para que suas demandas sejam consideradas e propôs a realização de uma audiência pública sobre as especificidades da saúde das mulheres para a prevenção e tratamento do HIV/Aids.
Confira a íntegra da audiência pública: