2 meses da Calamidade – A Reconstrução em disputa.

Completamos 2 meses desde que a água começou a subir, dando início à  calamidade que deixou quase a totalidade do Rio Grande do Sul debaixo d’água. Esse tem sido o principal assunto das nossas vidas desde então. Olhar o que tem sido feito nesses dois meses é crucial para projetar como estaremos daqui um ou […]

2 jul 2024, 10:40 Tempo de leitura: 10 minutos, 14 segundos
2 meses da Calamidade – A Reconstrução em disputa.

Completamos 2 meses desde que a água começou a subir, dando início à  calamidade que deixou quase a totalidade do Rio Grande do Sul debaixo d’água. Esse tem sido o principal assunto das nossas vidas desde então. Olhar o que tem sido feito nesses dois meses é crucial para projetar como estaremos daqui um ou dois anos, é preciso analisar para agir e corrigir rumos.  

Passamos pelo primeiro momento da emergência, quando resgatar as pessoas nos telhados e áreas alagadas se sobrepunha a tudo. Uma enorme corrente de solidariedade se formou para salvar vidas, levar água potável, comida e roupas para quem perdeu tudo.Conforme os dias foram passando, pudemos dimensionar o estrago, chorar os mortos e começar a limpar a lama. O processo longo de reconstrução do Rio Grande do Sul, com seus problemas e dúvidas, passou a ser a grande questão para nós gaúchos .

Moradia.

Um dos problemas mais urgentes da reconstrução sem dúvida é a moradia.  Ainda há quase 9 mil pessoas em abrigos e quase 400 mil desalojados* . Uma redução significativa se pensarmos que no ápice da crise, quando o número de pessoas em abrigos ultrapassou 80 mil e o de desalojados beirou os 600 mil, mas ainda assim um número enorme de pessoas sem casa. As políticas públicas anunciadas, como o Minha Casa Minha Vida Reconstrução, o cofinanciamento estadual para aluguel social e estadia solidária, entre outras, não estão chegando na ponta com a rapidez necessária para garantir moradia digna aos atingidos. 

*Dados do Boletim da Defesa Civil de 24/06 e da Agência Brasil em 26/06

Nesses dois meses acompanhamos denúncias de  violações de direitos em abrigos, também enfrentamos a tentativa do governo Melo de criar um campo de refugiados climáticos na capital, com uma cidade provisória de barracas no Porto Seco, ao mesmo tempo que o governo sabotava projetos como o uso da rede hoteleira para abrigamento. Vemos até agora centenas de milhares de imóveis vazios no estado, que poderiam estar garantindo um teto para as vítimas da calamidade. Mesmo em meio à catástrofe, a especulação imobiliária tem recebido prioridade em detrimento das pessoas. Isso ficou evidente na reintegração de posse que o Governador Eduardo Leite patrocinou, no dia 16 de junho, colocando mais de 100 famílias na chuva, tirando-as de um imóvel que antes estava abandonado no centro histórico de Porto Alegre.

A retomada de setores muito atingidos.

A Calamidade causou bilhões em prejuízo, atingindo todos os setores. A retomada das atividades e a reconstrução da vida das pessoas depende de uma ação decidida do poder público, com políticas de auxílio financeiro para os atingidos, isenção de tarifas como de água e luz, condições especiais para renegociar dívidas, entre outras.  

Para exemplificar cito alguns setores, como a educação, que está enfrentando uma série de complexidades para a volta às aulas. Desde escolas que estavam abrigando quem perdeu tudo, passando por alunos fora de suas casas e instituições que tiveram estruturas e acervos comprometidos. O setor cultural, também duramente afetado, teve espaços de apresentações fechados permanentemente, bibliotecas e livrarias alagadas. No campo, assentados e pequenos produtores perderam safras, animais e maquinários para as enchentes. Nas cidades, além da questão da  moradia, há a ameaça das demissões e de falência de comércios que tiveram seus estoques inundados. Em todo o estado há um sério problema com o aumento de doenças como dengue, leptospirose e hepatite. 

Embora nesses meses tenham sido anunciadas medidas para atender parcialmente setores atingidos, o que tem sido implementado é insuficiente. 

O caminho para a reconstrução mais uma vez será a luta social.  Sem que haja pressão dos setores atingidos não serão garantidos os recursos emergenciais para a cultura, nem a prioridade na vacina da dengue para o RS, tampouco o auxílio emergencial até o fim da calamidade. Por isso, uma das coisas mais importantes que têm ocorrido desde que a catástrofe começou, é o surgimento de novos movimentos sociais, de pessoas atingidas pelas enchentes, com ações nos bairros para pressionar os governos por soluções reais e urgentes. 

Autoridades estaduais  e municipais têm culpa?

O governador Eduardo Leite foi rápido em ir a público para dizer “que não era hora de procurar culpados”. Mas há sim culpados, sem os quais a catástrofe não teria tomado a dimensão que assumiu. Leite, que desfila sob os escombros com seu colete laranja, negligenciou as recomendações de ampliação de investimentos na Defesa Civil,  mesmo após a tragédia que devastou o Vale do Taquari em 2023.

Leite se alinhou ao setor mais retrógrado do agro e buscou se aproximar da política anti ambiental do então governo Bolsonaro. Em 2019 sua gestão alterou a toque de caixa quase 500 normas ambientais do RS, flexibilizou a proteção dos pampas e áreas de preservação permanente. Seu governo também privatizou empresas chave para o enfrentamento ao caos climático, como Corsan, de Saneamento e a CEEE, de energia elétrica. 

O negacionismo climático e a má gestão também tem seus representantes municipais. Enquanto escrevo este texto, mais de 160 cidades sequer enviaram a documentação para que as famílias recebam o auxílio reconstrução que já está disponível. Na capital, Porto Alegre, o prefeito Melo deixou o sistema de bombas sem manutenção, além de aprofundar o sucateamento dos órgãos públicos e privatizações. Há também indícios de relações espúrias envolvendo a empresa contratada pela gestão municipal para a manutenção do sistema de prevenção a enchentes. Segundo noticiou o portal Intecept, um dos sócios da Bomba Sinos é o ex-funcionário da prefeitura responsável por fiscalizar os contratos da empresa.  

Uma das primeiras medidas apresentadas, tanto por Melo, quanto por Leite, foi a contratação da Consultoria Alvarez & Marsal, para apresentar um suposto “Plano de Reconstrução”. Essa consultoria, A&M, tem entre suas especialidades a recuperação da imagem de  empresas envolvidas em crimes ambientais, tendo atuado por exemplo a serviço da Vale no crime ambiental de Brumadinho e Mariana.

A pergunta principal que esses governos têm buscado responder é  “como eu posso me livrar da responsabilidade?” quando deveria ser” O que precisa ser feito para a reconstrução?” . Se eles nem mesmo estão tentando fazer a pergunta correta, qual a chance de acertarem a resposta? 

Esse é um ponto importante, pois as eleições municipais estão se aproximando, e um dos desafios para avançar na reconstrução é justamente tirar os negacionistas climáticos das Câmaras de vereadores e prefeituras. Mesmo com essa operação em curso, Melo e Leite figuraram em pesquisa recente com 60% de reprovação. O povo sabe.

A questão da dívida do estado com a União:

A reconstrução do Rio Grande do Sul necessitará de um forte aporte de recursos do Governo federal. Um dos caminhos para isso é a liberação dos valores da dívida do RS com a União. A condução dessa questão tem sido um ponto especialmente preocupante. A suspensão que o Governo anunciou, por 3 anos, libera um montante significativo de dinheiro para a reconstrução, cerca de 23 bilhões de reais, e é um gesto muito positivo. Mas é preciso dizer que essa é uma dívida ilegítima, que já foi paga e mesmo assim continuou a crescer após as sucessivas renegociações e juros abusivos. Corre-se o risco, e isso é quase certo, que, após o prazo de 3 anos de suspensão da dívida, o Rio Grande do Sul veja uma explosão de seu endividamento, pelos gastos da reconstrução somados ao término do prazo. Esse endividamento abrirá espaço para planos neoliberais de recuperação fiscal, com privatizações em larga escala, arrocho salarial e cortes em serviços públicos, ficando ameaçados inclusive aqueles responsáveis por evitar e reagir a novas catástrofes. O cancelamento dessa dívida ilegítima é central para que os esforços de reconstrução sejam bem sucedidos.  

A rede de desinformação e o desserviço da extrema direita.

A extrema direita, como era de se esperar, atuou para disseminar desinformação, sabotar ações do poder público e com isso promover suas figuras nas redes. O estrago é visível, por toda parte há quem acredite que o Rio Grande do Sul não Precisa do Estado para se reerguer da calamidade, que bastam alguns influencers e coachs estelionatários para que tudo se resolva. O senador bolsonarista Mourão também se destacou, quando disse em uma entrevista, na qual tentava justificar sua total ausência no estado, que se envolver nos salvamentos seria “desvio de função”, por isso ele permaneceria em Brasília.

Nosso mandato chegou  a acionar a justiça, através da PGR contra 7 deputados federais da extrema direita que reproduziram notícias falsas no plenário da Câmara

O retorno ao que era antes não é mais possível.

Cidades serão totalmente transformadas. Cruzeiro, Roca Sales, Arroio do Meio e Encantado, por exemplo, possuem áreas que foram inteiramente destruídas, com alteração do próprio terreno onde antes havia casas e comércios. Os municípios mais duramente atingidos, e que já haviam sido afetados por eventos climáticos extremos em 2023, enfrentam também a migração de parte da população.

A reconstrução das Cidades precisa prepará-las para a realidade do agravamento da crise climática. É preciso elaborar e implementar planos de ação climática, com medidas concretas, adaptação das cidades, treinamento de voluntários, fortalecimento do sistema de defesa civil e alertas. Além, é claro, de  revogar as recentes alterações anti ambientais da legislação e avançar em projetos socialmente responsáveis e ambientalmente sustentáveis.

A crise climática é uma realidade incontornável, as falhas em prevenção, na defesa civil e preservação ambiental já custaram muito mais caro do que qualquer investimento que deixou de ser feito sob o argumento de “conter gastos”.

O projeto de reconstrução do Rio Grande do Sul está em disputa, de um lado estão os que têm culpa pela catástrofe ambiental: negacionistas e neoliberais, que buscam oportunidades de negócios na reconstrução associados a empresas “abutres”. Do outro lado estão todos os setores que defendem que a reconstrução priorize a vida das pessoas, ouvindo a ciência e destinando investimentos para resiliência climática, políticas ambientais e sociais.   

Esse cabo de guerra ocorre em um cenário em que o PIB do estado pode encolher 40 Bilhões. Será necessária muita mobilização, transparência e participação social para vencer.

Para concluir, retomo algumas exigências importantes que temos pautado para a reconstrução:

-Moradia digna! Enfrentar a especulação imobiliária, destinando imóveis vazios à moradia. Ampliação de programas de aluguel social e construção de habitações sociais. Utilização da rede hoteleira, fiscalização e combate à violação de direitos nos abrigos. Não às cidades provisórias!

-Apoio financeiro emergencial às pessoas atingidas pela calamidade.

-Fortalecimento das defesas civis e órgãos públicos.

-Cidades preparadas para a realidade do agravamento da crise climática. Medidas preventivas e respostas eficazes. Sistemas de alertas nos municípios.

– Cessar as privatizações, que fragilizam a capacidade de resposta do Estado.

-Combate ao negacionismo climático e à desinformação. Não às fake news!

-Obrigatoriedade de elaboração de Plano Diretor nos municípios atingidos, em diálogo com o avanço de planos como os de Drenagem Urbana e de Ação Climática.

Veja as iniciativas do nosso mandato para enfrentar a calamidade no Rio Grande do Sul: https://fernandapsol.com.br/iniciativas-rs/