*Bernardo Correa (mestre em Sociologia pela UFRGS e membro da direção estadual do PSOL/RS)
Recentemente foi divulgada uma pesquisa da consultoria Atlas Político que mostrava que a desaprovação do Governo Jair Bolsonaro superou a aprovação pela primeira vez: 36,2% da população considera a gestão do presidente “ruim” ou “péssima”, uma cifra que supera os 28,6% que avaliam como “ótima” ou “boa” em seus primeiros cinco meses. Este quadro se expressou nas manifestações de domingo (26 de maio). É certo que elas não foram inexpressivas, nem muito menos desprezíveis, mas muitíssimo menores do que as manifestações anteriores da extrema-direita e absolutamente insuficientes para os objetivos que o próprio antipresidente se colocou. Queria mostrar mais força que o 15M mobilizando os seus verdadeiros idiotas úteis, queria mostrar que estava mais forte do que diziam as pesquisas. Resumindo, fracassou.
Há quem tenha se surpreendido com o número de pessoas que, apesar de todas as trapalhadas, escândalos e absurdos cometidos pelo governo, tenham se mobilizado no domingo (26). Mas é preciso compreender que o fenômeno do bolsonarismo não foi e não será apenas eleitoral, ele tem uma base social distinta da direita tradicional, ele tem as ruas como um de seus terrenos de disputa.
O atraso no Brasil nunca foi pequeno, se manifesta de maneiras distintas e tem aparelhos muito diversos (famílias, igrejas, palácios, grupos neonazistas, monarquistas, institutos ultraliberais, forças armadas, milícias…). O que Bolsonaro conseguiu nas eleições foi ser seu catalisador, mas não seu organizador. Após ter assumido o governo está em piores condições para este propósito, para o bem de todos. Para conseguir seus 57 milhões de votos, em grande medida por fora dos meios convencionais da política, o bolsonarismo mobilizou forças e estruturas reacionárias que envolveram muita gente. Muito mais gente do que a que esteve nas ruas no domingo. Mais do que surpreender-se com a força do “bolsonarismo puro” como se tem chamado os que foram às ruas, é preciso analisar que as manifestações mostraram uma menor capacidade em mobilizar mais do que a si mesmos. Foi a capacidade de extrapolar-se que garantiu a eleição de Bolsonaro e ela demonstra-se cada vez menor. Há pelo menos três fatores determinantes desta desidratação.
O primeiro é o mais profundo e mais estrutural: a crise econômica. Grandes ilusões moveram desde os mais pobres que experimentaram o dilema infantil de “colocar os dedos na tomada para ver se dá choque” até economistas que acreditaram que as expectativas em torno da vitória do capitão reformado levariam a um aumento dos investimentos e, logo, do emprego e da renda. Nada mais falso, pois a incerteza que caracteriza seu governo leva qualquer capitalista a especular e não a investir, a burrice arrogante aprofunda a incerteza. Para piorar, há pelo menos 13 milhões de desempregados, em 7 anos, a renda acumulada dos mais ricos aumentou 8,5%; a dos mais pobres caiu 14%. O percentual de famílias brasileiras endividadas alcançou 62,7%. Os caminhoneiros, que foram fonte de uma grande parte da popularização do antipresidente, amargam preços escandalosos no combustível e nas tabelas de frete. A realidade é sempre mais forte que qualquer ilusão.
Os dados divulgados pelo IPEA referentes ao 2º trimestre de 2019 demonstram que a economia brasileira está beirando a depressão. As previsões de crescimento do produto interno bruto (PIB) em 2019 vêm passando por seguidas revisões e caíram de 2,5% em fevereiro para 1,3% em maio. Do ponto de vista fiscal, para o ano que vem, a expectativa de deficit, que era de 0,7% do PIB, passou para 0,9%. Os dados indicam, ainda, que haverá uma alta da inflação acima da projetada anteriormente e o dólar bateu os R$ 4,00. Na comparação com março do ano passado, a demanda interna por bens industriais teve queda de 7,2%, resultado pior do que a produção industrial, que caiu 6,1% segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)”. Com este quadro, os antidepressivos receitados por Guedes tendem a levar o paciente ao suicídio. Aliás, o liberalismo é especialista em produzir crises, mas superá-las nunca foi seu forte, como bem definiu Safatle: “Você pauperiza a população, retira-lhe direitos e garantias, transfere renda para setores que preferirão o investimento seguro do rentismo, descapitaliza o Estado e depois não sabe por que a economia não cresce. Isso não funcionou em lugar algum do mundo e não funcionará aqui”. (Folha de São Paulo, 17-05-2019).
Em segundo lugar está a divisão do bloco no poder. Se as eleições puderam unificar setores ultraliberais (como o partido Novo, Guedes, etc.), setores das Forças Armadas, evangélicos e fanáticos olavistas e outros, o governo inaugurou uma disputa encarniçada entre eles. Parte dos que bradavam consignas autoritárias, agora respondem a pressões parlamentares sedutoras que não conheciam. Por outro lado, a agenda da burguesia nacional unifica-se em torno da pauta econômica de arrocho contra o povo para aumentar sua taxa de lucros, mas não alinha-se à contrarrevolução cultural que a ala “A Praça é Nossa” do governo prega. A famosa briga com o “centrão” tem essa pragmática como base material. O antipresidente busca coesionar sua base mais atrasada sob o discurso no terreno da moral e dos costumes, autointulando-se representante de uma indecifrável “nova política” mas este é justamente o impeditivo para formar uma base sólida no Congresso Nacional para aprovar as reformas que a burguesia precisa, um dilema que põe em risco a própria governabilidade. Esta contradição esteve presente nas ruas do domingo, pois o que mobilizou o “bolsonarismo puro” (apesar da insistente tentativa da Globo em afirmar o contrário) foi a pauta golpista de fechar o Congresso e o STF. Foi a polarização com o “centrão” e crenças extremamente autoritárias que levou esses milhares às ruas. Entretanto, enredado em sua própria convocatória, Bolsonaro precisou desdizer-se.
Por último, é preciso analisar o impacto da própria agenda do governo nas massas. A maioria não está a favor da Reforma da Previdência, nem dos cortes na educação e, pasmem, segundo a pesquisa da Datafolha de abril de 2019 nem mesmo dos pontos centrais do pacote de Moro. Uma parcela expressivamente maior diz que a polícia não pode ter liberdade para atirar em suspeitos (81%), que policiais que matam devem ser investigados (79%) e que quem atira em alguém por estar muito nervoso deve ser punido (82%). Para a maioria dos brasileiros, a posse de armas deve ser proibida (64%) e a sociedade não fica mais segura com pessoas armadas para se proteger (72%), esta opinião é especialmente alta entre mulheres (74%), jovens de 16 a 24 anos (69%) e pessoas com renda de até 2 salários mínimos (72%). Além disso, segundo o Datafolha, 51% dos brasileiros têm mais medo que confiança na polícia, enquanto 47% confiam na corporação mais do que a temem. Homens (52%), pessoas de cor branca (51%) e com renda superior a 10 salários mínimos (58%) estão entre as que mais confiam nas forças policiais. Já o medo supera a confiança entre mulheres (55%), jovens de 16 e 24 anos (53%), pessoas de cor preta (55%) e indígenas (60%), além daqueles com renda de até 2 salários mínimos (54%).
Frente à queda de popularidade, à crise com o “centrão” e às multitudinárias mobilizações em defesa da educação – que tiveram a capacidade de mover inclusive setores que apoiaram eleitoralmente seu projeto – Bolsonaro dobrou a aposta e chamou seus correligionários a mostrar sua força nas ruas. Chegou a falar em 1 milhão de pessoas na Avenida Paulista, mas não conseguiu juntar esse número somando todo país. Ao contrário de sua opinião, o dia 15 não foi uma movimentação de idiotas úteis ao Lula Livre, mas uma manifestação de massas contra seu governo. As universidades extrapolaram-se, #EleNão. Enquanto havia seis quarteirões dispersos na Paulista no dia 26, no dia 15 tinham onze quarteirões lotados. Os atos de apoio ao governo aconteceram em 156 cidades, segundo balanço do G1, já em 15 de maio, houve protestos em 222 cidades de todos os 26 estados do país, mais o Distrito Federal. Em termos de números de pessoas mobilizadas, mesmo comparando com o lugar onde é o berço do bolsonarismo, o RJ, a passeata do dia 15 de maio teve pelo menos o dobro de pessoas. Cidades como Salvador, Porto Alegre ou Natal o 15M foi mais que o triplo do 26M. Como diz o ditado, quando se olha árvore se esquece a floresta. À luta! Dia 30 vai ser maior!